sábado, 18 de julho de 2020

Mas um dia se passa e uma mistura de alívio e angústia toma conta de mim. Hoje é um daqueles dias que a gente finge que vai tomar banho para chorar no chuveiro sem que o seu filho veja. Eu já não sei mais o que fazer com ele, o que prometer para ele nem mais como convencê-lo de nada. Hoje tudo parece sem sentido. Amanhã também e depois de amanhã tudo vai continuar sem sentido. Eu escrevo esse post na pressa com medo dele acordar de madrugada, como ele tem feito desde o começo da pandemia e me pego chorando em frente a tela. Muitos dirão que eu devia deixá-lo me ver chorar, para entender que os pais também ficam tristes. Mas muitos do que disseram isso não tiveram que criar seus filhos no meio de uma pandemia nas condições mais do que peculiares e assustadoras que as mães brasileiras estão tendo que fazer. Eu não vou dizer para o meu filho para entender mais nada do que ele já está tendo que entender. Muito do que está acontecendo nem eu mesma consigo entender. As pessoas fazem cálculos, estipulam datas para saída do confinamento e dizem para si mesmas “quando a vacina ficar pronta”... A verdade é que muitos de nós não teremos a chance de tomar a vacina. Nossa expectativa de vida agora é uma incógnita e eu me pergunto se pegarei o vírus e se caso o pegue, conseguirei me curar. Aqueles quilos a mais do natal do ano passado que não consegui me livrar pesam ainda mais nas minhas incontáveis culpas agora do que em qualquer outra ocasião. Mas o que mais pesa, sem sombra de duvidas é não saber como criar o meu filho. A lista de dúvidas, arrependimentos e culpas também segue crescendo exponencialmente. Meu filho me interpela “mãe, porque antes do corona a gente não saia mais? A gente não fazia isso ou aquilo?” Minha vontade era de responder “porque eu era uma idiota”, a coisa mais sensata que se passa na minha cabeça, mas a verdade não é só essa. Eu tinha um emprego que não gostava que me ocupava um tempo monumental e que não me dava praticamente retorno algum. Essa é a mais pura verdade. Se eu soubesse que o nosso “confinamento” iria durar o ano todo teria comprado uma casa com jardim, teria saído com você, meu filho, toda vez que você me pedisse. Eu teria te comprado um cachorro e entrado no pula-pula com você. Teria me vestido como uma mandinga só para poder comprar passagens para visitarmos seus avós e teria engolido todas as ofensas dos adultos idiotas do condomínio para você brincar sem limites na área comum do prédio que agora parece o cenário de um filme de ficção-científica. Mas eu não sabia, ninguém sabia. A maioria de nós achava que isso duraria no máximo dois meses. Como nós chegamos a esse ponto? Como nós continuamos nesse ponto? Como nós conseguimos pioras a cada dia mais? Eu já tentei parar de ler as notícias, mas não consigo. Quero saber quando isso vai acabar, quero ter uma pista. É uma busca infrutífera, eu sei, mas não sei outra maneira de manter minha mente ativa. Bolo planos mirabolantes desde acampar na fronteira com a Argentina até vender tudo e tentar alugar um jatinho para tirar todos os que amo daqui. Mas no final eu acabo mesmo preparando o café da manhã e tentando viver um dia após o outro. Muita gente tenta entender o que faz as pessoas se arriscarem e saírem durante a pandemia. Eu não sei o que psiquiatras e psicólogos tem a dizer, mas exceto aqueles que precisam trabalhar, eu sei o que muitos sentem ao sair de casa. É uma tentativa de sobreviver nessa loucura que sabemos cada vez mais que seremos os últimos a sair. Enquanto eu recebo fotos da quase normalidade da Alemanha, eu vejo muitos se refugiando na fazenda de algum parente, eu nunca me senti mais estrangeira no meu próprio país como me sinto agora. São 1200km de distância que sem ter onde dormir ficaram intransponíveis. O que me resta são 80m2 de um porcelanato frio e sem sol com meu núcleo familiar. E torço para poder reencontrar todos os que amo, todos bem, quando essa loucura acabar. Eu tento fazer a minha parte, mas tenho que levar meu filho para tomar sol. Quando nós disseram para nos isolarmos, acredito que nem os médicos imaginavam que seria por tanto tempo. Meu filho precisa se exercitar, tomar sol, precisava brincar e ir para escola também, mas isso até pode esperar. Eu desço com ele com o coração na mão. Aperto o botão do elevador e passo álcool em gel, desviamos de todos os idiotas sem máscara na rua. Pouco são os que fazem menção de manter uma distância segura. Descemos nos horários mais inóspitos nos lugares menos convidativos porque queremos nos sentir um pouco seguros. Tem dias que meu filho não quer descer. Ele criou um mundo particular onde tudo é belo onde o Darth Vader é bonzinho e todos são amigos e na sua fantasia eu só ouço as onomatopeias de batalhas e corridas. Tem dia que o mundo dele está muito melhor que esse. Isso é quase todo dia. Tentamos fazer com que ele participe das tarefas, mas as batalhas parecem tão boas que quase nunca são interrompidas. E na hora da refeição é sempre uma mistura de uma pergunta sobre algum filme que ele assistiu com algum projeto que ele tem que começa quase sempre com a frase “quando o corona acabar”... mas ele tem cinco anos. É normal para ele pensar assim. O que mais me assusta são adultos acharem que ele vai acabar com certeza.
Eu assisto e leio muita coisa sobre o que está acontecendo e quase nenhuma delas me serve enquanto mãe. Vejo os conselhos de “tente manter uma rotina” com bastante ceticismo no momento. A rotina já perdeu seu propósito quando não fazemos mais distinção entre dias de semana e finais de semana. Eu me sinto cada vez mais dentro da caverna de Platão me perguntando que tipo de fantasia vai existir lá fora quando tudo isso acabar e se acabar. Os conselhos de brincadeiras e atividades com as crianças também me parecem absurdos. Entre cuidados da casa e alimentação não me sobra mais quase tempo nenhum. Além de toda estratégia que tenho que fazer para conseguir descer com o meu filho, o que toma além do tempo que estamos lá fora, ao total, umas 3 horas. Meu orgulho é manter o café da manhã e o almoço quase sempre na mesma hora. O resto é lucro. No mais, a minha mãe, como sempre, fez fofoca com a família inteira no natal passado porque eu não queria conversar com fascista, agora que supõe que está tudo bem entre nós, já esqueceu que tem uma filha. Não liga, não quer saber e quando pergunta como vai e eu digo “não muito bem” ela não responde e diz que precisa terminar o almoço. No mais, o que me mantém em pé é mesmo a esperança de ainda poder salvar o que resta da infância do meu filho. Que eu consiga fazer ele passar da melhor maneira por isso tudo e que de certo modo nós consigamos compensar de alguma forma “quando o corona acabar” como ele sempre diz. E eu preciso parar por aqui, esse texto sem começo nem fim, que tinha um objetivo no começo, mas que eu nem lembro mais qual era.